Por Gustavo Frasão
O céu de Brasília estava limpo, o relógio passava das 11h da manhã. Enquanto ministros despachavam em gabinetes refrigerados e parlamentares cruzavam corredores acarpetados, uma cena brutal acontecia a poucos metros dali, sob o concreto de um viaduto no Setor de Diversões Sul.
Um menino de não mais que dez anos, idade do meu filho mais velho, coberto por uma manta esfarrapada, aspirava lentamente a fumaça de uma pedra de crack. O olhar, vazio, caía no horizonte. O corpo pequeno, maltrapilho, sucumbia diante de uma droga que corrói até o que ainda nem teve chance de ser construído: a infância.
Não era caso isolado. Nos arredores da Rodoviária do Plano Piloto, cartões-postais de Oscar Niemeyer se tornam, diariamente, vitrines da miséria. Crianças transformadas em sombras de si mesmas, sugadas pelo vício, pelo abandono e pela indiferença estatal.
O episódio poderia ser apenas mais uma página da crônica da desigualdade brasileira. Mas ganhou um contorno ainda mais emblemático neste agosto, quando o youtuber Felca publicou um vídeo que viralizou em todo o país. Foram quase 30 milhões de visualizações em menos de uma semana. O tema? Adultização.
Felca escancarou o que milhões preferem ignorar: a normalização de práticas que empurram crianças para papéis adultos — seja pela exploração sexual, pela pressão midiática, pelo trabalho precoce, pelo vício em drogas ou pela violência cotidiana.
Segundo a consultoria Quaest, foram mais de 1 milhão de menções ao termo nas redes sociais em apenas sete dias após a publicação. O vídeo, em si, bateu os 35 milhões de visualizações. No Congresso, deputados correram para apresentar projetos de lei contra a exposição e a exploração infantil. Meta e Google foram convocados a se explicar.
Mas e nas ruas de Brasília? Ali, o conceito de adultização não é debate de internet: é realidade nua e crua. Uma criança de dez anos fumando crack é o retrato mais cruel da adultização: ser forçado a viver problemas de adulto quando ainda se deveria estar aprendendo a brincar.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) não deixa dúvidas: é dever da família, da sociedade e, principalmente, do Estado assegurar proteção integral, dignidade, educação e saúde. Mas entre a lei e a rua há um abismo.
Segundo o IBGE, cerca de 2,4 milhões de crianças e adolescentes estavam em situação de trabalho infantil no Brasil em 2022. Já um levantamento do Ministério do Desenvolvimento Social indica que mais de 32 mil crianças e adolescentes vivem em situação de rua. Brasília, segundo dados da própria Secretaria de Desenvolvimento Social do DF, concentra centenas deles na região central — a poucos metros da Praça dos Três Poderes.
O crack, droga barata e devastadora, encontrou nesses jovens um terreno fértil. O II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (LENAD) já apontava que 78% dos usuários de crack relataram ter iniciado o consumo ainda na adolescência.
E o que o governo faz? Nada que esteja à altura. Programas de acolhimento são tímidos, intermitentes ou inexistentes na prática. Abrigos não dão conta. Políticas de prevenção são frágeis. O Estado, que deveria ser o guardião da infância, fecha os olhos enquanto crianças consomem drogas em plena luz do dia, na capital do país.
*A normalização da tragédia*
Enquanto as estatísticas explodem, a sociedade se acostuma com a barbárie. Crianças maltrapilhas que pedem trocados nos semáforos são vistas como parte do cenário urbano. Meninos dormindo em papelões ao lado de fogareiros improvisados, tragando crack, viram paisagem da rodoviária.
A tragédia está tão normalizada que parece não chocar mais. Mas deveria. Porque cada criança invisível sob um viaduto é uma sentença contra a democracia que insiste em se autoproclamar moderna e justa.
Felca colocou o dedo na ferida digital. Mas o problema é muito maior que o TikTok ou o YouTube. Adultização não é só a exposição midiática precoce. É também o trabalho infantil que rouba anos de estudo. É a menina explorada sexualmente em troca de comida. É o menino fumando crack sob o viaduto enquanto carros oficiais passam por cima.
Criança precisa estar na escola, precisa brincar, precisa sonhar. E se isso não acontece, a culpa não é da criança. É do Estado, que falha. É da sociedade, que ignora. É da política, que finge não ver. É um futuro interditado, já comprometido.
O menino do Setor de Diversões Sul talvez não saiba, mas já é símbolo de algo maior. Símbolo de uma infância roubada, de uma capital que prefere esconder sua miséria atrás de espelhos d’água e prédios monumentais. Símbolo de um país que aceita conviver com a adultização forçada de seus filhos.
A pergunta que fica é simples: até quando?
Porque, enquanto a resposta não vier, o crack continuará queimando infâncias embaixo dos viadutos — e o Brasil seguirá roubando de si mesmo o futuro que insiste em prometer. Não adianta tentar fazer um caviar super elaborado se nem o arroz com feijão está saindo direito.
Gustavo Frasão
Jornalista
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